A subjetividade através das telas
Danilo LIma
Orientação de Mariana Souza
Poucas coisas são tão íntimas quanto um diário. O que escrevemos e despejamos nesse objeto simples são anedotas, desabafos e fragmentos de subjetividade que talvez só nós mesmos podemos entender completamente. Contudo, o que acontece quando grande
parte da construção da nossa subjetividade está fortemente conectada também a uma memória coletiva?
Em Diário de Confissões Íntimas e Oficiais (diario de confesiones íntimas y oficiales), a realizadora argentina Marilina Giménez justapõe (e contrapõe ao mesmo tempo) as esferas do pessoal e do coletivo ao ilustrar sua narração individual com uma série diversificada de insertos em VHS da TV de seu país. De uma paixonite famosa de novela, uma lenda urbana da Xuxa, até um contexto de alarmante crise econômica, as investigações
com o mundo exterior são em grande parte incitadas e processadas através da mídia, para depois serem significadas dentro de nós.
Nesse aspecto, o curta-metragem de 2022 é uma obra bastante condensadora da experiência de crescer no final do século XX, com arquivos datados de 89-91 a 2001. Uma vida inteira mediada por telas, mais especificamente a do televisor, que, numa espécie de altar luminoso bastante popular nas casas das famílias, serve tanto de referência ideal
quanto de espelho para nossas próprias questões. A linearidade da narração contrasta com um excesso de imagens, ocasionalmente desconexas do filme-arquivo, construindo uma experiência de troca de canais, de televisão como pano de fundo (nem sempre relevante) de
um devaneio e fluxo de pensamento bem mais importante.
Ao muitas vezes contrapor em significado as cenas apresentadas e o que é dito por ela mesma, Marilina expõe como uma imagem que pode simbolizar a degradação moral para alguns - como um debate acerca da comunidade LGBTQ+ num programa de auditório - também representa um momento de identificação e resistência para outros. Isso fica especialmente evidente quando a diretora narra seu primeiro romance sáfico, com Marina La Grasta, artista musical do grupo Ibiza Pareo, em um contexto histórico de transição em que tais temas variavam da exposição ao sensacionalismo dentro do debate público.
A TV pode até nos fazer crer que a história oficial está contida dentro de seu acervo imagético. Porém, para a diretora e para todos aqueles que vivem uma identidade distinta das normas culturais e apagada pela mídia, existe outra realidade bem latente depois que o aparelho televisivo se desliga. Logo, o poder de violência simbólica das imagens transforma-
se também em um lembrete da resistência e do orgulho do que acontecia fora das telas. As imagens que nos são exibidas podem até serem as mesmas, mas as que vemos definitivamente não são.
O mesmo dilema de representatividade aparece em outra produção selecionada para a Mostra Absurda, na Sessão Vestígios do Desvelamento, mas sob uma lente bem mais contemporânea. O vídeo Futuro Cibórgue (2022) de Ossy Nascimento é uma obra recifense experimental que brinca com técnicas e estilos e acaba, conscientemente ou não, atualizando o debate para uma realidade agora tomada por multitelas e pela
democratização das imagens.
Técnica e arte caminham juntas, mas saber qual delas dita o ritmo do progresso cultural é uma pergunta sem resposta fácil. Contudo, nunca houve uma sem a dilatação da outra e, sabendo disso, obras nascidas na era digital encontram sua grande força justamente na rebelião da técnica e no amadorismo - posto aqui de forma alguma como pejorativo. É a estética do improviso, do imperfeito, da livre associação e do absurdo que tornam obras como Futuro Cibórgue bons exemplos de uma corrente de produção artística
atual. Outra tendência é a mescla de formatos: curta, videoclipe, videoarte; não basta ser transmidiático, têm que ser plural em si.
Curiosamente, a obra começa com uma certa semelhança ao trabalho argentino: uma cena da televisão. Neste caso, é um recorte mais recente, brasileiro e até traumático, uma fala da problemática ex-ministra Damares Alves. Essa cena porém é logo interpelada pelo realizador e depois por uma série de manipulações visuais, revelando que a televisão virou apenas um pano de fundo de baixa resolução e cujo monopólio sobre as imagens não
existe mais.
Essa dominação da TV então é substituída por um evidente interesse no ato de filmar a si mesmo, pelo máximo de ângulos possíveis. Através de uma montagem de recortes, o curta compõe um mural do seu diretor. É a fragmentação da figura que, pelo contrário, dá unidade ao experimento de Futuro Cibórgue. Outra rebelião acontece quando o filme retira a imagem digital de uma moldura clássica (fingida) e a alonga e distorce ao
máximo, revelando a fragilidade do pixel, da imagem e portanto também da identidade das pessoas em cena.
No fim das contas, tanto Diário de Confissões Íntimas e Oficiais quanto Futuro Cibórgue são trabalhos que lidam com temáticas LGBTQ+ e com a construção de identidade, mas inseridos cada um em contextos completamente distintos e específicos da mídia e das imagens. Se em um as imagens soam opressoras, limitantes e evidenciam o apagamento, no
outro elas são justamente a ferramenta de visibilidade e empoderamento. Passou-se o tempo em que tínhamos que assistir passivamente as imagens “oficiais” e apenas contemplar uma realidade paralela em nossas mentes. Hoje, as imagens estão nas mãos de cada pessoa e consequentemente também o seu direito à identidade.