Notas sobra a Mostra Absurda
Helena Sampaio
Orientação de Mariana Souza
1 - Por toda a mostra, o parecer é o da efetivação de uma crise, mais especificamente a do “sujeito universal” dentro das realizações audiovisuais. Compreende-se, portanto, finalidades semelhantes para filmes tão distintos. Porém, o que se intriga é o sustentamento dessa crise. Na maioria das vezes, resulta de uma mistura entre a ostentação de signos contemporâneos do audiovisual, a dissociação completa de uma tradição “narrativa” e a artesanalidade das feituras.
2 - Por cada um desses ditames, a importância do diário dentro de nossa atualidade cinematográfica parece atar sua recorrência a um fator: coincidir-se com a abertura de arquivos. Ou seja, agir em retrospecto sobre imagens já existentes, para revelar algo que se quer dizer de antemão, ou no caso de “Diario de confesiones íntimas y oficiales”, declarar algo mais incisivo: uma ausência. Na medida que Marilina Giménez, realizadora argentina
que impera sua voz monótona para descrever correlações entre sua vida íntima e o que se passava na televisão, vemos uma sincronia entre os costumes rejeitados pela sociedade e sua imagem na história da comunicação: ambos se situam como anedota. Entre a crise monetária argentina e a experiência compartilhada de ver Xuxa em programas infantis
latino-americanos, se sugestiona o aparecimento de coisas incômodas, geralmente trazidas à tona unicamente para o escárnio ou sensacionalismo. A dissidência sexual e de gênero, amalgamada entre personagens representantes de entidades voltadas para justiça social ou figuras civis, aparecem esporadicamente na programação televisa. Se torna, para uma
espectadora na margem como Marilina, uma antevisão de um processo de ocidentalização da cultura argentina. Não se deu a escassez de imagens de si própria sem também existir algo mais violento: a limpeza étnica e o extermínio indígena nos interiores do país.
3 - O crescimento exponencial dessa dor se reflete pela completa supressão, dentro dos polos urbanos, dos momentos de respiro da comunidade LGBTQIA+ argentina. Seja pelo concentração da violência policial ou na expansão da força de grupos reacionários, a voz de Marilina retém a mesma textura das imagens televisivas que acompanham o filme inteiro: existe um desgaste, levado a cabo pela montagem de associações. O VHS completamente serrilhado é disperso, sendo o discurso do filme meditado pela contemplação de uma companhia de artefatos midiáticos.
4 - O alinhamento de dores particulares como expansão de processos gerais,
também presente em outras obras desse continente audiovisual argentino, como Playback (Agustina Comedi, 2019), atingem, dentro dessa perspectiva, graus de diálogo acerca dos pontos de partida e de chegada que a narrativa dos filmes da mostra trazem.
5 - O principal ponto de partida que filmes como “Onde Está Mymye Mastroiagnne?” assumem para si é o de um estado de tradução. Mais especificamente, como traduzir veículos de narrativa convencionais para o mundo da realidade virtual. Nessa inferência, é certo que o terreno de como a história é contada não pode ter um mote que não seja o da investigação. O curta-metragem recifense, assinado por biarritzzz, começa com uma
cabeleireira dando a triste informação que perdeu uma amiga. Essa amiga era seu login de sua personagem no jogo Second Life, precursor de protótipos de metaverso nos anos 2000. O ponto de vista então é assumido por uma amiga-avatar, que trata de passear pelos espaços do videogame à procura de sua amiga desaparecida.
6 - A imprevisibilidade de um mundo programado, com regras diferentes das que regem o mundo comum das filmagens, sempre recorreu a uma espécie de melancolia dentro de obras que seguem a mesma linha de produção de “Mymye”. Seja pelas videoartes de Phil Solomon realizadas em machinima de GTA, ou as instalações de Chris Marker feitas também no Second Life, existe o prenúncio de uma fascinação que coincide com o fato de termos que nos ater a um novo aprendizado. Aprender a lidar com recursos antes não vistos
em nosso meio, e assim ter a paciência de reconstruir uma história, um relato.
7 - Nessa reconstrução, existem certos imperativos. O principal, de que um mar de acidentes podem frustrar quem cria na tridimensionalidade de um jogo de computador. Mas acredito que é nesses acidentes que a narrativa parece ganhar traços distintos. Afinal, não é a queda da taxa de frames por segundo ou as falhas do sistema de colisão das personagens que provocam as limitações do filme em dar funcionalidade para suas soluções, mas são elas as próprias soluções. Por mais que vinculadas a um meio digital
“falso”, essas soluções encontram eco na própria demarcação de interesse do filme: dar voz a novas proposições de criação.
8 - Essas proposições podem assumir roupagens diferentes, mas todas partilham de um credo semelhante: reger a inventividade sob uma realidade vestigial. Por todo a mostra se discutiu a questão do “realismo”, e como os filmes de alguma maneira tentavam derrubar esse conceito tão caro às narrativas. Mas pelo que me parece, os maiores êxitos dos melhores filmes presentes na curadoria são o de justamente compreender a realidade a
partir de seus vestígios, não para traçar comentários do que se tem de mais imediato de nosso mundo, mas sim o de propulsionar o que engendrou os olhares de novas subjetividades que finalmente conseguem ter a autonomia de criação.
9 - No caso de “Mymye”, elementos da cultura metropolitana do Recife servem como aporte para a artesanalidade do filme, criando ligamentos entre dados de convenção da videoarte e a configuração de um olhar mais centrado a novos tipos de narrativa. Narrativa, no caso compreendida como uma cadeia de sucessão de acontecimentos, podendo ou não ter fundamento em um tipo de “coerência” das imagens e sons conectados.
10 - Nisso, parece ser o caso de incompreensão de diversos filmes situados na programação. Isso porque existe um interesse comum dentro dos filmes ditos experimentais em deslocar o espectador, em ter como vontade o fato de ir contra os olhares mais comuns voltados para a narrativa. É claro, isso sempre é refletido na própria localização da vontade de realizadores em dar vazão a sentimentos claramente vindos de um não-lugar. Mas o que
acontece, seja em curtas como “Futuro Ciborgue” (Ossy Nascimento) ou Pacto Pela Vida (Luiza Côrte), é o entendimento do deslocamento do espectador como uma facilitação do desconforto.
11 - Entendendo que a arte não se molda como ansiolítico (algo por vezes desejado por um recorte de espectadores), o fato de tais filmes não terem uma pulsão higienizadora dos conflitos expostos, não significa necessariamente que se voltam para as melhores possibilidades do deslocamento espectatorial. Afinal, o desconforto citado vem muito mais
de uma acumulação de efeitos visuais do que necessariamente a disposição desses efeitos como articuladores de seus discursos, para também dar autonomia aos espectadores de verem os filmes como processos abertos, mais ambíguos a interpretações ou mesmo a sensibilidades mais impactantes.
12 - O que quase todos os filmes da mostra expõem, de uma forma ou de outra em suas tentativas e erros, é a de que a violência tem como saída a fraternização.
.png)
Rehearsals for Retirement (Phil Solomon, 2007)

Onde Está Mymye Mastroiagnne? (biarritzzz, 2023)

Playback (Agustina Comedi, 2019)
