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Cool for the summer: castelos, memória e trânsito em reatua(LIZ)ações pandêmicas

Katharine Trajano

Orientação de Mariana Souza

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Quando eu comecei a escrever esse texto, a minha intenção era falar do self.Pensei em diversas outras tônicas que poderiam me ajudar a dar conta de como o Cool for the summer me atravessou. Eu o entendo ainda neste lugar de historiadora que vem tentando desvendar a questão da recepção cinematográfica, como uma obra pertencente a um período e construto específico, analisando quais ideias permeiam aquele imaginário de quem o fez (produz), e de quem o faz chegar (distribui/exibe) a quem não fez, mas também faz parte do processo, saca? Aí, nesse último, está a espectatorialidade. O público, a crítica, os discursos e leituras que envolvem esse filme – o que perpassa uma tentativa de apreender rastros, fazer o tal do “bricolé” que ouvi, pela primeira vez, na aula d’uma professora de metodologia querida há dois (milhões de) anos. Daí percebi que desenvolvi castelagens[1]outrascom o filme de Liz. E é sobre elas que compartilho.

Reconhecendo os limites de ocupar o lugar de quem escreve sobre o trabalho de outra pessoa, exponho desde já minhas limitações; conversamos um dia inteiro no curso de crítica sobre reconhecer esses limites. A crítica é, independente do que achamos e podemos querer, um lugar de produção de saber(es). Ela não parte de uma neutralidade, possui diferentes formas, ocupam diversificados espaços, também um lugar de poder. É uma prática, como qualquer outra, que fazemos sentindo. Ou deveríamos, né? Porque ela não acaba em si ou é um mero exercício de ‘dar a voz’ ou exercer agenciamento – é onde a flexibilidade e a compreensão tornam-se fundamentais, pois não se trata de uma questãomoral, tendo em vista, como afirma Helena Vieira, que esta é principiológica e não dialogável. Ela é estratégica.

E por que faço essas reflexões antes de partir ao curta? Bem, porque esse é também um produto dele e da Mostra Absurda (2021). Todas as obras escolhidas para esta edição, sem exceção, constituem um lugar de sentir, de (nos) afetar, de deslocar e/ou situar questões íntimas em meio a tanta produção feita sob a sucursal pandêmica e genocida que nos atinge, ainda mais forte que há um ano, no Brasil. Falar sobre morte, mas, sobretudo, falar sobre essa vida que insiste e persiste apesar do caos e das diversas crises historicamente postas, tem nos colocado num derivo coletivo. Ou como gostam de chamar por aqui: em castelos.

A castelagem é, a meu ver, o lugar que Vitória Liz nos leva. O processo de estar vivenciando uma crise sanitária sem precedentes tem nos feito repensar tudo o que nos envolve - autoanalisar e autocriticar num processo contínuo de quem encara a ruína de um mundo colonialista e capitalista, pensando se existirá um depois e como será. Conscientemente ou não. E quando digo nós, é como essas corpas-existências ditas marginais ocupam Abya Ayala e resistem aos males plantados aqui utilizando sua própria potencialidade contra um projeto de mundo imposto e há bastante tempo falho.

Um marco da pandemia destacado no início do filme é justamente a frustração de estar neste lugar onde as fronteiras enquanto sujeitos - inevitavelmente – sociais se esbarram e as percepções do “micro” (interior/individual) ao “macro” (exterior/coletivo) se amplificam. Esse processo pode ser violento e solitário, mas temos criado, dentro de diversas especificidades e condições, formas de comunicá-lo e registrá-lo: estão em curso (re)atualizações ou criações que extrapolam as formas convencionais (fabricadas e repetidas à saturação) de se resguardar a memória. Dessa vez, tateando na sua própria fluidez.

A experiência da personagem principal com a perda temporária da audição retoma um lugar onde a comunicação, algo basilar à essa nossa socialização e vida na ‘era social’, é a chave: “Eu fiquei me sentindo literalmente presa dentro de mim porque eu não conseguia falar, eu não conseguia ouvir porque eu não conseguia falar”. O isolamento social perpassa um confinamento mental assolado pela distopia e nesse sentido a personagem prossegue, ainda sobre as suas duas orelhas inflamadas: “E eu tenho culpa de falar, imagina quando não consigo ouvir (risos)”. Essa culpa poderia ter sido algo paralisante – já que não sabemos se é neste mesmo momento que a tela é gravada e esse áudio chega ao destinatárie que se dá a inflamação –, porém acaba por dar as condições de fazer o filme. 

Se, como diz Achille Mbembe, nós somos humanos já acoplados aos nossos objetos, precisamos compreender como reverter a “softwarização” de nossa existência “e de todas as outras entidades vivas na Terra”. Reinventar as maneiras de contar uma história dando a volta num maquinário como o cinema, por exemplo, a partir da gravação da tela de um aparelho celular, é a maneira escolhida por Liz de reelaborar o uso da tecnologia. Ali, no seu “bricolé”, vemos autorretratos, prints, fotos de show, vídeos, memes, momentos em família, com as amigues dançando e celebrando no que parece ser a Rua das Ninfas, na Boa Vista (PE).

O que intensifica o processo da castelagem entre o filme e quem o assiste é também a sensação contrastante de uma voz melancólica e memórias de momentos felizes de outrora com o relógio da tela marcando 2h da manhã. E não à toa, as rupturas sonoras se dão em momentos particulares: seguem o rit(m)o do carnaval. Nas cenas de Olinda, vemos figuras brincantes e fantasiadas seguindo a multidão embaladas pelo frevo. Sorrisos, dança e purpurina. Em São Paulo, num corte anterior, mas que está presente em todo o filme de certa forma, estão as Escolas de Samba Vai-Vai e a Gaviões da Fiel. É como se naquele momento, a tal inflamação auricular inexistisse e o que ecoa nos seus e nos nossos ouvidos são os samba-enredo sobre o “Quilombo do Futuro” (Vai-Vai, 2019) e “A Saliva do Santo e o Veneno da Serpente” (Gaviões da Fiel, 2019). Copio abaixo os dois trechos que me parecem ser reproduzidos lá:

 

Vou, vou pra Bahia

Acende a chama

No terreiro de Iáiá

É a força da magia

Que me arrepia

E se espalha pelo ar

A Saliva do Santo e o Veneno da Serpente. G.R.E.S. Gaviões da Fiel. Composição original de Raul Diniz (1994), atualizada por Janos Tsukalas (Grego) e Vladimir Moura Leite (Magal), 2019.

Aruanda, ê, Aruanda

Trago a força de Palmares

Pra vencer demanda

Quilombo do Futuro. G.R.S.C. Vai-Vai. Composição de Edegar Cirilo, André Ricardo, Dema, Rodolfo Minueto, Rodrigo Minueto, KZ, Gui Cruz e Marcelo Casa Nossa, 2019.

Ouvindo os sambas posteriormente, notei que ambos falam de resgastes históricos, dialogam com as questões das ancestralidades e a luta por uma outra cosmovisão brasileira. Então, eles eram um respiro em meio ao caos. Sendo, sobretudo, uma forma de imaginar um pós-pandemia atravessado por essa retomada dos saberes originários e afro-diaspóricos. Pois, mesmo que naquele momento a fala e a escuta estivessem comprometidas, há a fé no que já se ouviu, nocontinuumdos registros orais daqueles que sobrevivem e sobreviveram à outras pestes da invenção colonialista. A Gaviões, inclusive, foi perseguida por alguns grupos conservadores cristãos por utilizar a figura de um Satã que triunfaria sobre Jesus Cristo, em 2019, na coreografia da luta travada entre o primeiro e o Santo Antão na comissão de frente. À época, o coreógrafo Edgar Junior explicou que o debate ali eram os limites e os usos da fé, que estão sempre sendo testados. O tabaco, que era o tema principal da canção, traz essa dualidade: pode ser utilizado, como em religiões de África e nas práticas indígenas originárias, para rituais e curas de dores, ou sucumbir ao vício nos estados de torpor. O último, contudo, advém das experiências e dos relatos que há séculos foram feitos pelos cronistas, viajantes e filósofos que cobiçavam os seus usos pelos nativos e a exploração da fauna e dos saberes das terras “descobertas”. O encantamento não era uma questão, então tratava-se o fumo como vinho – era meramente recreativo.

A Vai-Vai, que fez o samba-enredo do ‘Quilombo do Futuro’, teve como intérprete oficial Grazzi Brasil, entoando na avenida que ter a pele preta e ser abençoado por Ogum é um privilégio “que não é pra qualquer um”. Com a justiça de Xangô e o acalento de Inaê, o povo preto centraliza a sua identidade na luta por um novo amanhã, assim como foi no Quilombo dos Palmares (PE). É preciso aquilombar-se. Desde os primeiros até os últimos segundos do filme, Vitória Liz evoca corpos e imaginários pretos. Compreender esse filme, através e além da discussão (clínica) do self, é entender as marcas que as trajetórias passadas, presentes e futuras constroem. A castelagem da madrugada é a potência do trânsito. É percorrendo a sua galeria de itens favoritados que a personagem fala das suas dificuldades em “lembrar que existe” e nas impossibilidades da continuidade a partir disso. E aí, nos perguntamos: há a impossibilidade de lembrar ou há uma falha na percepção que é construída sobre si e sobre os outros que a pandemia interrompeu? E interrompeu, ali, um processo fundamental dessa persona – o seu próprio aquilombar? A angústia que vem com a pulsão da morte (nesse caso, de ter a saúde mental e física comprometidas em meio a pandemia de um vírus imigrante e sem cura), é o que faz a conexão com a fala de Vilanelle, da série Killing Eve, ressoar. A ilustração exibida de uma figura humana agoniada que estende os braços para alçar a liberdade (na figura de um pássaro voando para longe) mas acaba falhando, tem mais a ver com a imaginação binária que separa o corpo do espírito,  da natureza, da religião, entre outros. Ela pouco tem a ver com o processo de aquilombar porque as suas bases são outras. Vilanelle é uma sociopata, logo, está mais centrada em suas experiências individuais do que no entendimento desta numa coletividade, bastante longínqua da relação existente em integrar um grupo perseguido justamente por ter uma concepção sobre a vida e sobre a morte que não é cristã, tampouco binária. 

A personagem do filme, isolada e atravessada por tantas questões, está castelando e nos falando que o processo de rememorar está, também, nas sociabilidades. Percorrer os registros de seus momentos felizes é um processo catártico. A tela de vidro do seu iPhone em tempos pandêmicos é como “El árbol de la vida” (a árvore da vida) de Gloria Anzaldúa, presente no livro Light in the dark/Luz en lo oscuro: a proposição da releitura de uma realidade que questiona o mundo e a produção dos conhecimentos que norteiam a nossa vida de forma binária. Ao ter uma visão da Virgem de Guadalupe saindo de uma ‘Monterey Cypress’ (cipreste-da-califórnia),Anzaldúa quer que confrontemos os aspectos destrutivos e violentos do “conocimiento”que nos guia. Para esta mestiça chicana e lésbica, a prática da espiritualidade está na junção com o ativismo político e social. Mesmo que a protagonista acredite na fala de Vilanelle sobre a alma que diminui tanto dentro de si que desaparece, as suas experiências parecem ser outras – e estão diluídas em todos os materiais expostos no filme. Até mesmo na música pausada da banda sul-coreana Hyukoh, chamada “comes and goes”, que fala sobre imagens que são repetidas mentalmente, através das idas e vindas da vida onde “a familiaridade é um senso comum/E eu sinto como se eu não estivesse mais aqui”. Entretanto, dizer essa familiaridade já é um processo de reconhecimento, e a sensação de não pertencer mais, não é a sua negação - é só um castelo criado; e, no filme, ele é erguido sobre as incertezas e inconstâncias da vida durante a pandemia.

Esse filme-memória-museu construído a partir de um outro uso do objeto tecnológico – como diz Mbembe  – demonstra que, assim como Anzaldúa e apesar das dificuldades que ambas expressam atravessar, a escritora e a cineasta sabem que há e sempre existiu um caminho alternativo a esse ‘caos’. Ele está nas raízes da árvore da vida, tanto quanto nas memórias e visões feitas diante dela ou noutros lugares, pessoas e situações onde encontramos a consciência alerta e afetiva que tem uma força de propulsão, de transformação. Castelar pode ser uma potência enquanto uma forma de reconhecer nossos processos (incluindo os violentos), mas isso depende de como estamos subjetivamente e sob que circunstâncias podemos produzir algo sobre. Senão, podemos reforçar um processo doloroso e até sadista.

Hoje, 18 de março de 2021, acordamos com um novo recorde de média de mortes diária por covid-19 no Brasil e o colapso de nosso sistema de saúde. Nesse mesmo país, onde a primeira vacinada foi a enfermeira paulista e preta, Mônica Calazans, essa e outras populações não-brancas formam irrisórios números de acesso à vacinação – moeda de troca de um governo negacionista e genocida encabeçado pelo clã Bolsonarista. Não devemos castelar para formar mártires, mas sim para destruir as estruturas que tentam a todo momento justificar que sim, precisamos de heróis(!). Pensar, seguindo Paulete LindaCelva, sobre “Outros fins que não a morte” (MOTE/Cereal melodia, 2020). Castelo, logo posso destruir, curar, construir intimamente e coletivamente a saída ou o retorno. Retomo e me vejo partícipe de uma consciência que é anterior a mim, mas que me move no agora e no que virá depois.

Por ora, dividida e mexida com o Cool for the summer, entendo que esse texto é também um processo de percepção – não se esgota nas linhas finais ou na música homônima da Demi Lovato. Volto para Anzaldúa, pois assim como Vitória Liz, ela nos abre portais através da contação de histórias. Graças à cineasta, nós vemos se atua(LIZ)ar a memória ancestral.

Parece que a árvore está me ensinando a perceber não apenas com os olhos físicos, mas também com o todo corpo, especialmente para ver com os olhos do meu outro corpo. A árvore de Guadalupe lembra-me de algo que eu tinha esquecido – que o  meu corpo sempre sentiu uma relação especial das árvores com os humanos, que temos uma consciência corporal das árvores e elas de nós. A conscientização não está apenas na mente, mas também inclui o conhecimento corpóreo. Esta consciência desperta algumas memórias ocultas ou conhecimento perdido de tempos passados, lembrando-me que estou fazendo algo que eu não sabia que eu sabia. Isso me lembra que eu tenho desenvolvido uma relação contínua com o espírito das árvores e da natureza desde que eu era criança e que posso alterar a consciência para me comunicar com eles. Para as chamanas, a consciência se refere a essa parte de nosso ser chamado de "espírito"; árvores, rochas, rios e animais têm consciência. Cheguei ao conocimiento de que estas práticas pessoais, privadas e espirituais de cura focam na nossa vida cotidiana - trabalho, pessoas, lugares, emoções e experiências pessoais que fazem a nossa existência. Esta história da árvore de la Virgen é uma visão curativa; histórias ("ensinamentos") também são curandeiras.

– Gloria Anzaldúa em trecho (traduzido) do livro Light in the dark/ Luz en lo oscuro: rewriting identity, spirituality, reality, publicado postumamente em 2015.

 

[1]Castelar é uma gíria, ou melhor, parte de um dialeto, comumente utilizado para expressar momentos de observações profundas. Relembra o termo “overthink” em inglês. Está presente em letras de rappers brasileiros como Racionais MC’s e Black Alien. Ela é também relacionada ao uso de substâncias que retiram os indivíduos de seu estado mental tido como “normal”.

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