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Acorde! O Brasil é um sonho

Paula Holanda Cavalcante

Orientação de Mariana Souza

O mote da segunda edição da Mostra Absurda (“visualidades dissidentes, veias abertas”) é autoexplicativo. A curadoria do projeto, formada por Manuela Andrade, André Antônio e Kalor Pacheco, deu prioridade a trabalhos realizados por integrantes de grupos sociais minoritários, sendo 10 dos 15 filmes experimentais selecionados obras de Pernambuco. Na mostra, pessoas racializadas ou dissidentes de gênero e sexualidade nos desvelam suas visões de mundo sob formatos, narrativas e poéticas que de alguma maneira confrontam a produção audiovisual hegemônica e o que o crítico de cinema Girish Shambu chama de “velha cinefilia” — “a cinefilia que tem dominado a cultura cinematográfica nos últimos setenta e cinco anos”, conforme o autor. A expressão “veias abertas”, que logo nos remete ao clássico “As veias abertas da América Latina”, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, evoca uma ferida profunda que ainda não sarou, uma metáfora para a série de problemas graves que ainda não foram resolvidos; opressões, violências e traumas históricos que a cada dia que passa tornam-se ainda mais escancarados no Brasil e no mundo. “O que para alguns é absurdo, para nós, é absurdamente real”, declama Kalor Pacheco, no texto que escreveu para a apresentação da primeira sessão da mostra: “O Brasil nunca existiu”. A verdade é que se questionarmos o que causou esta ferida que está cada vez mais purulenta, alguns grupos sociais talvez responderão que foi o impeachment de Dilma Rousseff ou as Jornadas de Junho, outros a ditadura militar, mas isso que chamamos de Brasil sangra desde 1500 (e por isso a ideia de país sempre foi inexistente para boa parte da população).

Denilson Baniwa; Iara e Íris Campos, Filipe Marcena, Marcelo Sena e Paulinho 7 Flechas; Coletivo Ficcionalizar; Aoruara; Laryssa Machada; Grace Passô e Wilssa Esser criaram obras de ficção que funcionam como portas para a realidade que a cegueira hegemônica nos impede de enxergar — afinal, o mundo em que vivemos é o mesmo, o que nos difere (e, infelizmente, nos individualiza e segrega) é a nossa percepção, nossa maneira de criar. “Vejam bem”, escreveu Chinua Achebe, “o privilégio é um dos maiores adversários da imaginação, espalhando uma grossa camada de tecido adiposo sobre nossa sensibilidade”. As narrativas privilegiadas, ou hegemônicas, são universalizadas e internalizadas como “normais” ou até mesmo “superiores”, e pessoas que não detêm o privilégio se encontram às margens dos processos criativos convencionais; portanto tendem a ser mais inovadoras.

A arte pode ser utilizada como uma ferramenta de controle ou de resistência, a depender de quem e como a cria. “A renovação da linguagem dá-se com a diversidade de sentidos”, como afirma a curadora Kalor. Universalizar uma experiência individual, hierarquizando-a como superior em relação às outras, é portanto um mecanismo de violência colonizador. Mostras como a Absurda se propõem a combater este mecanismo, em conteúdo e forma.

“O Brasil nunca existiu” faz referência a uma citação de um dos seis filmes incluídos na sessão. “República”, de Grace Passô e Wilssa Esser, é um curta metragem caseiro em que a existência do Brasil é questionada, assumindo uma posição onírica que passeia entre o pesadelo e o sonho. O filme, que teve apoio do Instituto Moreira Salles, é uma excelente demonstração de como é possível se elaborar uma narrativa consistente e fascinante com o uso dos enquadramentos certos e uma boa iluminação em um ambiente domiciliar. E é este o grande ponto forte da Mostra Absurda: a maioria dos filmes selecionados propõem soluções muito poderosas para as limitações proporcionadas pelo coronavírus, sejam elas relativas ao uso do espaço físico, ao distanciamento social ou às dificuldades financeiras. Como “República”, os outros filmes da sessão “O Brasil nunca existiu” trazem conteúdos que contrariam os padrões e valores que caracterizam as grandes premiações de cinema.  Trazendo novamente as reflexões do autor Girish Shambu, “o ato de avaliar é central para a velha cinefilia. Elaboração de listas, classificações, criação de hierarquias e níveis — essas atividades, em larga medida reconhecidas como uma propensão masculina, são importantes para a velha cinefilia”. Existe uma razão para filmes megapremiados serem quase sempre muito caros e laboriosos, tão antiquada e violenta quanto essas premiações que contemplam e fazem a manutenção da velha cinefilia. As ideias de beleza e qualidade são determinadas arbitrariamente, e se reconfiguram conforme os interesses do mercado. A nova cinefilia, conforme Shambu, rompe com a veia conservadora e nostálgica da velha cinefilia — marcada por comportamentos obsessivos, dominadores, abusivos e violentos.

A Mostra Absurda é caracterizada pela contrahegemonia pois dá espaço para obras que de algum modo questionam os estereótipos e as narrativas repetitivas da velha cinefilia; obras que cutucam as chamadas “veias abertas”, talvez em uma tentativa de cicatrização. Shambu afirma que a velha cinefilia dá prioridade ao longa-metragem narrativo de ficção, na mostra, veremos curtas-metragens, docuficções, performances e vídeos experimentais.

Em geral, os filmes da sessão “O Brasil nunca existiu” parecem abraçar o realismo mágico e atualizam rituais antigos, contextualizando-os no tempo presente com suas abordagens progressistas. “Arreia”, filme desenvolvido coletivamente por Iara e Íris Campos, Filipe Marcena, Marcelo Sena e Paulinho 7 Flechas, busca incorporar em um ato de coreografia os elementos do caboclinho, tradição vinculada à memória dos indígenas pernambucanos (a princípio, a proposta do trabalho, que recebeu apoio do Sesc Pernambuco, era ser um espetáculo de dança realizado presencialmente). Denilson Baniwa, outro grande expoente da arte indígena contemporânea, sintetiza em pouco mais de um minuto a violência contra indígenas ligada ao garimpo ilegal em sua obra “Azougue 80”, na qual se apropria de um discurso do genocida Jair Bolsonaro como o material sonoro para uma performance em que ele forja se alimentar de iscas artificiais e beber um copo de azougue. Outro trabalho que tem como centro a arte de performar é “Tentativas de retorno”, de AORUAURA, no qual a potencialidade da obra se concentra no ato de tentar, como ela mesma afirma. O filme, caseiro, utiliza a sobreposição de imagens e uma paisagem sonora que capta o som da terra e dos animais como recursos estéticos que reforçam o espaço e o tempo da obra.

A partir da sobreposição de apenas duas imagens fotográficas, Laryssa Machada realizou a montagem de “Apesar do apocalipse, há o tempo”, que relembra o desabamento de uma mina em 1867 que matou 17 escravizados no município de Nova Lima, em Minas Gerais. Por fim, o filme “Estamos vivos”, do Coletivo Ficcionalizar, também utiliza a fotografia como meio, em uma animação em stop motion que demonstra como a intervenção ou a ocupação de espaços (através da arte, da cultura e da educação) pode modificar a realidade da juventude negra e quilombola. 

Os filmes da sessão “O Brasil nunca existiu” nos inspiram a abraçar e refletir sobre uma produção audiovisual independente, de baixo orçamento, com proposições inteligentes e simples, que promovem a reflexão sobre ser uma pessoa dissidente no Brasil, deslocada da ideia de país: um país que, para a maioria, nunca existiu. Eles também nos convidam a analisar as dívidas históricas que ainda não foram pagas e só crescem; são veias abertas.

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