Diário de confissões íntimas e oficiais: uma sílaba a mais e não se está no mesmo mar
Thaís Leandro
Orientação de Mariana Souza
Se estamos em silêncio, há espaço para conhecermos aquilo pelo qual nutrimos um fascínio inexplicável? Talvez, quando as coisas não são ditas, a sutileza das brechas seja o lugar possível. No caso do filme “Diario de confesiones íntimas y oficiales" (Argentina, 2022), a fenda do videocassete é o dispositivo para construir essa memória. É através de imagens de arquivos de VHS dos anos 1980 até os anos 2000, que a diretora Marilina Gimenez parte de seu próprio corpo — no caso, sua voz — para nos conduzir a reflexões sobre visibilidades lésbicas/bi e cultura de mídia.
Como o próprio título do curta sugere, há um contraponto de suas próprias vivências com o que passava na televisão daqueles anos que englobam sua infância e início de juventude. É nos anos 2000 que a diretora passa a ter seu primeiro namoro com uma mulher: Marina — nome que Marilinia repete exaustivamente sua semelhança e diferença diante do seu. Um punhado de sílabas diferentes e o mesmo mar sonoro e territorial já não seria o mesmo.
Em 2001, a Internet não era o principal veículo com o qual nos relacionávamos. No entanto, a virada do novo milênio nos colocava num momento de muita informação, em que certamente passamos muito tempo diante de programas televisivos. Sentíamos a globalização acontecer e, ao mesmo tempo, outras brechas para se relacionar afetivamente. Nunca, em momento algum, Marilinia mostra o rosto. Em vez disso, a ouvimos em voz-over misturando-se com os áudios e imagens de programas como Show da Xuxa, She-ra e Talk-shows enquanto declara seu amor por Marina.
É curiosa a relação ambivalente de identificação com essas personagens loiras. Era gostoso ter uma heroína poderosa com um enredo próprio e uma apresentadora com um palco cheio de parafernálias e rodeada de mulheres, mas como havia tanta identificação com essas protagonistas loiras? Penso que, nesse sentido, a diretora também propõe a reflexão sobre os próprios discursos oficiais da Argentina, que, assim como o Brasil, sofreu um amplo genocídio e apagamento sobre sua história indígena. Em determinada passagem do filme, Marilinia fala de como acabou esbarrando em leituras de um autor que alegava que, para se modernizar, a Argentina precisava passar por esse apagamento de suas origens indígenas, precisava se "ocidentalizar" — e, de fato, ainda hoje, infelizmente, as Campanhas do Deserto, operações militares que exterminaram povos originários, são exaltadas como momento de civilização da Argentina (Buenos Aires).
Acho, inclusive, que há muitas nuances na cena em que a diretora menciona quais programas televisivos assistia com vergonha: das telenovelas dramáticas com personagens sáficas aos reality-shows e Show da Xuxa. Em relação ao último, em específico, houve esse momento nos anos 1990 em que se disseminou um boato que, ao ouvir seus discos ao contrário, era possível encontrar a palavra "diabo" (o que provaria seu... suposto pacto com forças ocultas, digamos assim) e é nesta passagem em que todo o disco é ouvido ao
contrário — quer algo mais queer que isso? — que Marilina relembra como seu colega de infância lhe pergunta por que a chamavam de machona.
Vejo um esforço profundo do filme em produzir uma reflexão sobre os efeitos da colonização com (in)visibilidade lesbica/bi. Para a autora feminista Adrienne Rich, muitas escritoras e escritores feministas, ou mesmo da causa LGBTQIA+, não notavam a heterossexualidade normativa como uma instituicao politica. Rich cita "A família - origem e evolução", no qual uma das teóricas, Kathleen Gough, enumera um apanhado de formas de poder dos homens em sociedades arcaicas e contemporâneas, sendo uma delas "imagens pseudolésbicas nos meios de comunicação e literatura; fechamento de arquivos e destruição de documentos relacionados à existência lésbica". E é nesse sentido que penso que trazer obsessivamente o próprio arquivo pessoal — o registro de uma um período inclusive de muitos altos e baixos para o movimento LGBTQIA+, de organização política e, no entanto, de
perseguição midiática devido à epidemia da AIDS — também abre brechas para construir um arquivo macropolítico, que resiste e persiste. E também constrói uma história de amor contínua.
Ao fim do filme, lemos "se nossos desejos são impossíveis, seremos um mistério". Fui procurar possíveis origens do significado Marilinia e não achei. Vi que o nome Marília provém de países lusófonos e significa "masculino" ou "marinha". Marina também vem de mar. Se o amor e nossas identidades são tão oceânicas, que nossa compreensão seja cristalina como um mar vizinho para habitar/descansar e convergir com o nosso.