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Prelúdios do alvorecer

Texto da curadoria 

Bia Pankararu, Kalor Pacheco e Manuela Andrade

Mauro Almeida, companheiro de luta de Chico Mendes na Amazônia, em seu
livro Caipora e outros conflitos ontológicos, fala de relatos de índios e seringueiros
experientes que se perdem na floresta e voltam para casa depois de dias ou horas com
o corpo e a roupa rasgados por espinhos, marcas de açoite, tomados pelo medo. O que
falar sobre a presença da caipora do Alto Juruá? Existem relatos de moradores que
afirmam já terem visto a caipora e dizem que ela cuida daquele território. Para os povos
originários da região, a função da caipora seria manter um equilíbrio naquele ambiente
e punir caçadores que matam mais animais do que precisam. Tal experiência cotidiana,
associada a presença de uma personagem mágica, busca tensionar a própria noção de
realidade. A partir de tal provocação, a experiência da realidade ressoa embaralhada.
Afinal, o que seria absurdo? O que seria real para os moradores do Alto do Juruá?


Desde as primeiras edições da Mostra Absurda o que norteia a sua criação é o

diálogo com narrativas audiovisuais que torcem a noção de realismo, compreendendo-o para além de um fenômeno estético e semântico apartado da experiência palpável domundo. Tendo como prioridade filmes que se propõem a criar e reinventar gramáticas estéticas e narrativas como expressão de corpos subalternizados e dissidentes, a ideia é alimentar um caminho que vise por uma abundância polissêmica, sonhos possíveis e estimule práticas comunitárias e estéticas urgentes.


A abertura da mostra para trabalhos de artistas visuais, performers e o cinema
experimental, por outro lado, busca extinguir as fronteiras entre as potências
semânticas de trabalhos não-narrativos
ao lado de obras da ficção e documentário que
também procuram de alguma maneira transcender ao lugar do realismo clássico do
cinema. A própria ontologia ou ponto de partida narrativa também são recursos que
podem girar pelo avesso a normatividade e a naturalidade com a qual se passou a
enxergar a estratificação social do mundo branco.


A programação composta por artistas e realizadores de diversas regiões do sul
global procura mostrar o palavreado fluente em imaginários que transbordam a
realidade
para não assumir um papel de mamulengo diante ao manusear o presente
espiralar.

A imersão nas obras selecionadas proporciona mergulhos profundos nos
elementos misteriosos, desconcertantes e avassaladores da experiência em estar vive,
mas o conjunto das narrativas predomina em enxergar lampejos de luz no final da
caverna
. O tema da mostra esse ano, Prelúdios do alvorecer, não subestima as potências
noturnas dos sonhos e dos feitiços da penumbra, mas foca em observar o sabor do
primeiro suspiro da manhã de calor após a tempestade.

SESSÕES

APARIÇÕES MAGNÉTICAS
(A pedra mágica / 4 bilhões de infinitos / Locomotivas / Apariciones / Cartas para
Arapuca
)


O significado primeiro da palavra sobrenatural está associado ao “fora do comum”, um
sentido parecido se aplica à percepção da palavra aparição, associada a eventos em
que se presencia a visão de entidades divinas. Mas o que seria o fora do comum,
exatamente? E o que acontece ao observar aparições aparentemente corriqueiras com
outro olhar?
O frevo é sagrado, assim como a praia de Arapuca e os filhos de Oxum.

MEMÓRIA CINTILANTE OU LAMPEJOS DE CURA
(A Última Ceia / Sethico / Os peixes não têm pálpebras, mas isso não significa que não
dormem/ Quando a noite ainda não existia/ Soberane)

A memória é um eterno reelaborar-se de si e da história coletiva, uma vez que é
entendida em constante movimento. Quando a imaginação se nutre de um alimento
inspirador e insurgente tudo pode se metamoforsear. Peixes aprisionados em
saquinhos de plástico à venda são devolvidos ao mar e o dissenso pode sacudir
estruturas.


TÚNEIS LUMINOSOS
(Suplício / Bala Perdida / Joana das mulheres de negócio/Timbira)

A arte de transformar a expectativa pelo caos em esperança e, quem sabe, até
em riso, junto ao absurdo do cotidiano capitalista feito para engolir toda gente
transmutado em lamparinas de possibilidades, iluminando caminhos de
resistências históricas do passado, presente e futuro.

MISTÉRIO E ENCANTARIA
(Modelo Vídeo /Onde Está Mymye Mastroiagnne?/ Quando Você Vem Me Visitar
/Panteras)



Por onde vagueiam teus mistérios? Por que o não-dito insiste em ensurdecer? O que
um corpo pode falar em silêncio? Onde habitam as sombras que te trazem tantas
revelações? Ter ciência do feitiço pode ser vital para não se perder no labirinto.

SAGRADO ONÍRICO
(Corpo Onírico/ CabocUrbano - Fogo no Canavial/
Pirenopolynda)


As buscas aí estão para serem feitas num caminho que vem de dentro. De
repente o que parece labirinto são só as voltas que o mundo dá. Se o tempo é
circular na contemporaneidade encontramos passado e futuro, nos
reencontramos. A natureza também tem seu contorno, ela reside na superfície
e no âmago, e pede mais de um sentido, transcende o olhar e o ouvir, é
também tato e tanto. É ainda cheiro do porvir. Gosto de si.

VESTÍGIOS DO DESVELAMENTO
(Pacto pela vida – Concreta – Futuro Ciborgue – Wufko – Diario de confesiones
y oficiales)


Vislumbrar a realidade, seja ela na ótica fantástica da experimentação, ou na
ótica nua e crua que documenta o espaço tempo, faz da sessão uma
experiência sobre encarar, encantar e narrar sobre a vida, os corpos, a matéria
e as não coisas também.

 

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