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A beleza que escapa aos olhos de Un
 
Lina Cirino


Orientação de Mariana Souza

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Escrever nem uma coisa Nem outra –
A fim de dizer todas –
Ou, pelo menos, nenhumas.

Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

Convoco Manoel de Barros, para escrever sobre Un. Animação performática que traz uma viagem audiovisual ambígua, de luz-escuridão, que dura aproximadamente dois minutos. Não pretendo fazer uma crítica do jeito que seus olhos estão acostumados a ler. Ao invés de explicar, analisar, debater o curta, vou pegar a carona poética de Manoel de Barros para desexplicar.

Jogar uma coisa aqui, ali, fuçar rastros por meio de fragmentos. A costura dos retalhos fica por sua conta, se assim é o seu desejo.

O meu desejo é descansar a mão enclausurada da Academia, com seus formatos, regras e expectativas. Não sei se conseguirei me redimir por inteira do pecado do intelectualismo, como poetizou ironicamente o mestre Gil antes de chamar Iansã no violão, em 1973, num show ambientalizado no olho do centro acadêmico - a Poli da USP:

Um dia eu ainda vou me redimir por inteiro do pecado do intelectualismo, se Deus quiser.
Não vou ter mais necessidade de falar nada,
de ficar pensando em termos descontrários,

de tudo, pra tentar explicar às pessoas que eu não sou perfeito, mas que o mundo também não é,
E que eu não estou querendo ser o dono da verdade,

que eu não estou querendo fazer sozinho uma obra que é de todos nós e de mais alguém, que é o tempo, o verdadeiro grande alquimista.

Mas vou vagar sobre sobre o tempo, sobre a efemeridade, sobre a presença, sobre o fluido, sobre o silêncio, sobre o escuro, o segredo, o afeto, nós.
Não quero desatar nós do filme, se é que ele tem alguns.
Quero encontrar a mim (ou nós) em Un.

Eu nasci e fui criada no sertão da Bahia. Morávamos na cidade, mas final de semana meu pai dirigia alguns quilômetros até o povoado em que nasceu, para visitar minha avó. Ela ainda morava na roça. Plantava milho, mandioca, licuri, o que a terra dura acolhesse. Criava galinha. Depois matava, sem dó, ela mesma, pra pôr na mesa quando chegasse visita: nós. Às vezes, ela até dava nome a algumas, quando se engraçava com o seus comportamentos absurdos. Tinha uma que chamava de Louca.

“Minha vó, por que a senhora escolheu o nome Louca?” Eu, criança curiosa.
“É Louca essa galinha, ela não pára quieta. Fica correndo pra lá e pra cá na roça. Caça briga com o Galo, não tem medo de morrer essa galinha Louca.”

De noitinha, quando o sol tomava seu rumo, as cigarras começavam a cantoria. Os grilos se achegavam aos poucos para compôr a melodia da noite. Outros insetos que eu não sabia identificar apareciam também. As vezes pra aplaudir. As vezes pra atrapalhar, né muriçoca?! Não sei se a lua tem som ou se é outra coisa úmida que ainda não sei, que faz um fundo de mistério, junto com o som do vento. Como se quisesse sussurrar segredos cósmicos nos meus ouvidos atentos.

A primeira vez que vi um vagalume foi lá na roça de minha vó. Era de noitinha. Eu, criança curiosa, fiquei hipnotizada com aquela dança. Achava que era uma estrela que tinha se machucado lá no céu e tava caindo, morrendo aos poucos. Acendia e apagava. Acendia e apagava. Acendia e apagava. “Será que essa estrela pegou uma doença lá no céu e veio se curar aqui na terra?”. Mas era uma estrela tão animada, ela não pousava no chão. Ficava dançando no ar, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, que nem Louca.

Os primeiros planos Un, com suas cores fluorescentes, suas formas, suas neblinas, sua paisagem sonora complexa e astuta
me conduziu para esse fragmento da memória:
Eu, criança curiosa.

Na animação, o vagalume parece vir do céu, como uma estrela cadente! Que cai na terra, numa noite escura e úmida, fazendo brotar cogumelos. Vários, vários cogumelos. Depois o vagalume (ou estrela cadente, se preferir) encontra uma flor murcha. Entra nela, dá um beijo ou um cheiro, não sei o que acontece lá dentro, mas quando o vagalume sai de lá, a flor fica mais animada. Ela se abre.

A estrela cadente (ou vagalume, se preferir) continua seu percurso: por onde passa, afeta - acende florestas úmidas, acorda a coruja, engana o sapo, alumeia lagoa e vitória-régias. Encontra outro vagalume, a estrela cadente, em nossos olhos vibrantes.

“Vagalumes somos nozes”, não à toa, é a sinopse deste curta sinestésico de Paulo Leonardo.

Un silencia diálogos: não tem necessidade de falar nada, como disse Gilberto Gil. Não ouvimos vozes humanas, em nenhum momento. Ouvimos a voz da noite. E a voz do afeto - o som que emite a vaga-estrela quando se conecta com outros seres da natureza. Até chegar em nós, bicho-humano.

Somos natureza também. Quase sempre esquecemos desse detalhe.

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